A FÉ SOB A CRUZ
Perseguição, Violência e Testemunho Cristão na História da Igreja e em Nosso Tempo
Texto de Padre Oswaldo Gerolin Filho
Atualizado em 29/11/2025Texto de Padre Oswaldo Gerolin Filho
Atualizado em 29/11/2025INTRODUÇÃO
Esta reflexão nasce de um questionamento pastoral apresentado por Dom José Negri, que nos provoca a reler a história da Igreja à luz de um fato incontornável: desde o seu início, a comunidade dos discípulos de Jesus caminha entre perseguições, incompreensões, cruzes e, ao mesmo tempo, uma esperança invencível. A fé cristã surge e amadurece não em ambientes protegidos, mas na fricção com a violência, a injustiça, o abuso de poder e a recusa da verdade.
O cristianismo não nasceu em um mundo neutro. Nasceu sob o peso do Império Romano, em um contexto de ocupação, de poderes religiosos e políticos que se sentiam ameaçados por um homem que anunciava um Reino diferente: não fundado na espada, mas no amor; não firmado no medo, mas na misericórdia; não centrado na dominação, mas no serviço. Esse homem, Jesus de Nazaré, foi proclamado pelos seus como Filho de Deus e Salvador, mas pelos poderosos foi reduzido a um título irônico: “Rei dos Judeus”.
A partir dessa história, a Igreja é chamada hoje a dar uma resposta firme, lúcida e evangélica ao século XXI, com suas violências, guerras, desigualdades, ataques à dignidade da mulher, manipulação do poder, da riqueza e das consciências. Este texto busca iluminar esse caminho, unindo uma leitura bíblica, histórica, antropológica e pastoral, e oferecendo uma palavra concreta para a vida da Igreja, para as pastorais e para a nossa Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, em seu caminho de 90 anos de fé e missão.
1. A CRUZ COMO TRONO: O ESCÂNDALO DO “REI DOS JUDEUS”
No alto da cruz, em vez de uma coroa de ouro, Jesus recebe uma coroa de espinhos. Em vez de um trono de mármore, uma cruz de madeira. Em vez de títulos de honra, uma placa de humilhação: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Aquilo que, aos olhos dos poderosos, era pura ironia e escárnio, Deus o transforma em revelação: a verdadeira realeza não se exerce esmagando o outro, mas entregando a vida por ele.
Na lógica política e religiosa daquele tempo, falar de “rei” significava falar de domínio, de status, de força militar e econômica. Era o rei que decidia quem vivia e quem morria, quem era incluído e quem era descartado. Jesus, porém, inverte essa lógica: Ele reina desarmado, perdoando. Ele não salva a si mesmo para poder salvar os outros. Na cruz, Ele reza: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”.
Este contraste é o coração da fé cristã: o Cristo que nasce, vive e morre em um mundo marcado pela violência não responde com a mesma moeda. Ele acolhe a vontade do Pai e abre uma via nova para a humanidade: a via da misericórdia. Essa escolha o coloca frontalmente contra os poderes estabelecidos, contra a lógica da riqueza acumulada, da religião fechada, do império que se sustenta na força. A cruz é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio: denúncia de um sistema de morte; anúncio de um Reino que nasce do amor.
2. LEITURA ANTROPOLÓGICA E PSICOLÓGICA: POR QUE O BEM PROVOCA ÓDIO?
Antropologicamente, a presença de um justo incomoda os injustos. O bem vivido com coerência revela, por contraste, a mesquinhez, o egoísmo e a mentira que muitos preferem manter escondidos. Desde Abel, na primeira página da Bíblia, o inocente é alvo da violência. O irmão não suporta ver a bondade do outro; sente-se julgado, ainda que ninguém o julgue.
Do ponto de vista psicológico, o perseguidor frequentemente projeta no inocente aquilo que ele não deseja admitir em si mesmo. O santo, o mártir, o cristão coerente tornam-se espelho indesejado. Em vez de deixar que o espelho o converta, ele tenta quebrá-lo. O amor gratuito desarma; quem não está disposto a se deixar tocar por esse amor reage com hostilidade. São Máximo, o Confessor, recorda: “O mundo odeia quem deixa de ser seu escravo.”
Também hoje, vemos essa dinâmica se repetir quando a Igreja defende a dignidade da pessoa humana, da vida, da família, da mulher, da criança, do pobre, e é acusada de atraso, hipocrisia ou intolerância. Muitas vezes, por trás das críticas mais violentas, há um conflito interior: a pessoa sente que, se levasse a sério o Evangelho, teria de mudar de vida.
3. LEITURA FILOSÓFICA: A VERDADE QUE QUESTIONA OS IMPÉRIOS
Filosoficamente, a cruz coloca uma questão radical: quem, de fato, tem poder? O império armado ou o crucificado desarmado? Para o mundo antigo, a verdade estava do lado da força. Para o Evangelho, a verdade está do lado do amor. O cristianismo apresenta uma revolução silenciosa: a verdade não é uma teoria abstrata, mas uma pessoa que ama até o extremo.
Sócrates morre por fidelidade à sua consciência. Cristo morre por fidelidade ao Pai e por amor à humanidade. A partir dele, todo poder que se absolutiza, toda riqueza que se fecha em si mesma, todo sistema que oprime o fraco é desmascarado. A cruz revela a falência de um modo de organizar o mundo baseado no medo, na exclusão e na violência.
Por isso, ao longo de dois mil anos, o Evangelho sempre foi inquietante para os impérios: para o Império Romano, para as ideologias totalitárias do século XX, para os sistemas econômicos que transformam pessoas em números, para as culturas que banalizam a vida e o corpo humano, especialmente o corpo da mulher. A fé cristã questiona, em profundidade, toda forma de idolatria do poder e do dinheiro.
4. LEITURA BÍBLICA: PERSEGUIÇÃO COMO MARCA DO DISCÍPULO
A Sagrada Escritura mostra que a perseguição acompanha os profetas e os justos. Jeremias é lançado na cisterna; Elias é perseguido; Amós é silenciado; o Servo Sofredor, em Isaías, é desprezado e rejeitado. No Novo Testamento, Jesus anuncia claramente: “Se perseguiram a Mim, também perseguirão a vós” (Jo 15,20).
Os Atos dos Apóstolos registram prisões, espancamentos e martírios. Estêvão, o primeiro mártir, morre pedindo perdão por seus algozes. Pedro e João enfrentam proibições, mas respondem: “Importa obedecer a Deus antes que aos homens.” Paulo percorre o Mediterrâneo entre perseguições, naufrágios e prisões.
O Apocalipse apresenta a Igreja como uma mulher grávida, perseguida pelo dragão, mas protegida por Deus. Essa imagem é de grande atualidade: a Igreja gera vida em meio a forças de morte; ela carrega, em si, o conflito entre o Reino de Deus e os reinos deste mundo. Por isso, a perseguição não é exceção, mas consequência da fidelidade.
5. LEITURA HISTÓRICA: DO IMPÉRIO ROMANO AO SÉCULO XXI
Ao longo dos séculos, uma longa fila de mártires atravessa a história: dos primeiros cristãos devorados nas arenas de Roma até os missionários assassinados na Ásia, África e América Latina; dos monges que defenderam os pobres contra abusos feudais até os cristãos que resistiram a regimes totalitários.
O século XX, marcado por guerras mundiais, ditaduras e ideologias ateias, foi, paradoxalmente, o século com maior número de mártires cristãos. Homens e mulheres que, em campos de concentração, prisões e fuzilamentos, preferiram perder a vida a renegar a fé. São Maximiliano Kolbe, em Auschwitz, ofereceu-se para morrer no lugar de um pai de família. São Óscar Romero foi assassinado enquanto celebrava a Missa por denunciar as violências contra os pobres.
Também hoje, cristãos são perseguidos em várias partes do mundo. Igrejas são queimadas, comunidades são expulsas, mulheres são sequestradas, jovens são mortos. Ao mesmo tempo, em contextos mais urbanos e secularizados, a perseguição assume formas sutis: ridicularização da fé, pressão para silenciar convicções, hostilidade à moral cristã, tentativa de marginalizar a Igreja do espaço público.
6. DOCUMENTOS DA IGREJA E ENSINAMENTO DOS PAPAS
O Catecismo da Igreja Católica afirma: “O martírio é o testemunho supremo da verdade da fé” (CIC 2473). São João Paulo II, na encíclica Redemptoris Missio, lembra que a missão é inseparável da cruz: não existe anúncio do Evangelho sem contradição.
Bento XVI, refletindo sobre o crescimento da Igreja, afirmou: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração.” Esta atração brota sobretudo do testemunho de quem permanece fiel em meio às provações. Francisco, na Evangelii Gaudium, recorda que a perseguição é um sinal da autenticidade do Evangelho, porque o mundo resiste ao amor que liberta e transforma.
Os documentos do Concílio Vaticano II, como a Constituição Lumen Gentium, apresentam a Igreja como povo de Deus peregrino, que caminha na história carregando cruz e esperança. A Gaudium et Spes chama a Igreja a ler os sinais dos tempos, a discernir, no meio das dores do mundo, os apelos de Deus à conversão e à justiça.
7. VOZES DOS PADRES DA IGREJA E DOS SANTOS
Tertuliano sintetizou a experiência da Igreja dos primeiros séculos: “O sangue dos mártires é semente de cristãos.”
Santo Inácio de Antioquia, a caminho do martírio, escrevia: “Sou trigo de Cristo; que eu seja moído pelos dentes das feras, para tornar-me pão puro para Deus.”
São Cipriano lembrava: “O cristão não teme; ele confia.” São João Crisóstomo pregava: “Nada é mais poderoso do que uma alma que ama.” Santa Teresa d’Ávila dizia: “Nada te perturbe, nada te espante; tudo passa, Deus não muda.” Santa Teresinha, pequena e gigante na fé, entendeu que sua vocação, no coração da Igreja, era ser o amor.
Em tempos mais recentes, São Maximiliano Kolbe recorda: “O ódio não é força criadora; só o amor cria.” São João Paulo II repete aos cristãos do mundo inteiro: “Não tenhais medo! Abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo!”
8. A FÉ NO SÉCULO XXI: DESAFIOS CONCRETOS
O século XXI não é menos violento do que os anteriores; apenas mudou de rosto. Vemos a violência contra a mulher, a banalização do corpo feminino, o aumento alarmante de feminicídios, a exploração sexual, o tráfico de pessoas, a cultura das drogas destruindo famílias inteiras. Assistimos à ganância de sistemas econômicos que colocam o lucro acima da dignidade humana, gerando desigualdades gritantes.
As guerras se multiplicam; crianças, idosos e inocentes pagam o preço da ambição de poucos. A violência atravessa as cidades, as casas, as escolas. As redes sociais, que poderiam ser espaço de encontro e diálogo, muitas vezes se tornam campo de agressões, linchamentos morais, difamações.
No meio disso, o cristão é tentado a duas fugas perigosas: ou se fecha, com medo, vivendo uma fé privatizada e sem testemunho; ou se adapta ao espírito do mundo, relativizando o Evangelho. A resposta cristã, porém, é outra: permanecer de pé aos pés da cruz, como Maria, sem fugir, sem revidar com ódio, mas sem renunciar à verdade.
9. A CAMINHADA DA IGREJA NO ANO SANTO E NAS MISSÕES POPULARES
O Ano Santo dos Peregrinos da Esperança convida a Igreja a redescobrir que sua identidade é peregrina: não estamos instalados, estamos a caminho. As missões populares na Diocese de Santo Amaro expressam esse movimento: sair dos templos, ir às casas, aos condomínios, às ruas, levar o Coração de Jesus onde a vida acontece, onde a dor se esconde e a esperança parece frágil.
Evangelizar, hoje, significa enfrentar também formas de perseguição: portas que não se abrem, indiferença, rejeição, desconfiança, críticas maldosas. Mas significa também encontrar, surpreendentemente, corações abertos, famílias sedentas de uma palavra de fé, jovens em busca de sentido, idosos que carregam na memória uma fé que os sustentou por décadas.
A Igreja é chamada a ser, neste tempo, sinal de esperança. A perseguição e a tribulação não são o ponto final; são o contexto em que a graça age com mais força.
10. 90 ANOS DA PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS: CRUZ E LUZ NA HISTÓRIA LOCAL
A história de 90 anos da Paróquia Sagrado Coração de Jesus é também uma história de cruz e de luz. Quantas lutas para erguer a igreja, organizar pastorais, manter a fé viva em tempos de crise! Quantas pessoas deram seu tempo, seu trabalho, seus dons, muitas vezes incompreendidas, criticadas, mas fiéis.
Houve conflitos, divisões, desânimos? Sim. Houve também reconciliações, recomeços, perdão. Houve moradores que partiram, outros que chegaram, famílias que atravessaram sofrimento, luto, desemprego, doença. Em cada tempo, a paróquia foi chamada a ser presença do Coração de Jesus: manso, humilde, firme, capaz de abraçar as dores sem se resignar ao desespero.
Celebrar 90 anos não é apenas olhar para o passado com nostalgia; é reconhecer que, ao longo de todas as tribulações, Deus foi fiel. E é assumir a responsabilidade de continuar a história com a mesma coragem dos que nos precederam.
11. ORIENTAÇÕES PASTORAIS PARA HOJE
Diante dos desafios deste século, o que a fé nos pede? Algumas atitudes concretas:
• Cultivar uma fé adulta: que conhece a doutrina, reza, pensa, discerne, não se deixa levar por qualquer moda religiosa.
• Assumir a cruz do testemunho: não ter medo de se declarar cristão, de defender a dignidade da mulher, da família, dos pobres.
• Vencer o medo com a caridade: responder às ofensas com respeito, às calúnias com serenidade, à indiferença com perseverança.
• Fortalecer as pastorais: a Pastoral da Escuta, da Família, da Juventude, da Liturgia, da Ação Social — todas são braços do Coração de Jesus.
• Trabalhar pela unidade: evitar fofocas, divisões, disputas de poder dentro da comunidade. O mundo já é suficientemente dividido.
• Ser presença missionária: nas missões populares, nas visitas aos condomínios, nas casas, nas redes sociais. Evangelizar com a palavra e, sobretudo, com a vida.
• Proteger os vulneráveis: apoiar iniciativas contra a violência doméstica, acolher mulheres feridas, orientar jovens em risco, defender a vida em todas as suas etapas.
• Rezar pelos perseguidores: interceder por quem ataca a fé, por quem ridiculariza a Igreja, por quem vive longe de Deus.
12. CONCLUSÃO: A FÉ QUE NASCE DA CRUZ
A fé cristã não nasceu em um laboratório de ideias, mas aos pés de uma cruz. Diante de um condenado, aparentemente derrotado, um soldado romano reconhece: “Este homem era verdadeiramente Filho de Deus.” A partir dessa confissão, a história muda.
Do ponto de vista humano, a cruz é fracasso. Do ponto de vista de Deus, é início de uma nova criação. Do ponto de vista do mundo, o mártir é um derrotado; do ponto de vista do Evangelho, é testemunha vitoriosa. A perseguição, o sofrimento, a violência não têm a última palavra.
Nossa resposta, hoje, não pode ser o desânimo nem o ódio. Deve ser uma fé mais profunda, mais consciente, mais corajosa. Uma fé que não nega a dor, mas a atravessa com Cristo. Uma fé capaz de falar aos meios de comunicação, às redes sociais, ao mundo da cultura e da política sem perder sua identidade. Uma fé que, como a do Centurião, descobre no crucificado o verdadeiro Rei.
Como recorda Dom José Negri: a história da Igreja é tecida de cruz e de luz. Quem carrega a cruz com Cristo não caminha nas trevas. Que a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em seus 90 anos e em sua caminhada missionária, seja sinal desta fé que nasce da cruz, que enfrenta a violência sem se render a ela e que continua proclamando, hoje e sempre: Jesus Cristo é o Senhor da história, o Rei que reina do alto da cruz e abre a todos um caminho de esperança.
ANEXO I – BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL
• Catecismo da Igreja Católica, nn. 2473–2474 (sobre o martírio).
• Tertuliano – Apologético; Apologia do Cristianismo.
• Santo Inácio de Antioquia – Cartas.
• São Justino Mártir – Primeira Apologia.
• Eusébio de Cesareia – História Eclesiástica.
• São João Paulo II – Redemptoris Missio; Veritatis Splendor.
• Bento XVI – Homilias sobre os mártires; Jesus de Nazaré.
• Papa Francisco – Evangelii Gaudium; Fratelli Tutti.
• Documentos do Concílio Vaticano II – Lumen Gentium; Gaudium et Spes.
ANEXO II – FRASES PARA MEDITAÇÃO E PREGACÃO
• “O sangue dos mártires é semente de cristãos.” (Tertuliano)
• “Sou trigo de Cristo; que eu seja moído pelos dentes das feras.” (Santo Inácio de Antioquia)
• “O ódio não é força criadora; só o amor cria.” (São Maximiliano Kolbe)
• “Nada te perturbe, nada te espante; tudo passa, Deus não muda.” (Santa Teresa d’Ávila)
• “No coração da Igreja, serei o amor.” (Santa Teresinha)
• “Não tenhais medo! Abri as portas a Cristo!” (São João Paulo II).